"Deixo‑me ficar deitado entre os cadáveres. Um Calmotin, dois. Centenas deles, milhares deles. Folhas mortas a flutuar na brisa de Outono. Tento erguer a cabeça, mas não consigo. Uma nuvem de moscas e mosquitos sobrevoa o meu corpo. Quero enxotá‑los, mas não consigo. Nuvens baixas e escuras atravessam o céu. É tempo de revelar a verdadeira essência da nação. Ontem à noite, algures entre a meia‑noite e o amanhecer, entre a retirada e a derrota, a chuva banhou este lugar e, apesar de a tempestade ter passado, ainda caem torrentes frescas de chuva sobre os cadáveres e sobre a minha cara. Sinto a cabeça dormente, os meus pensamentos são as sombras efémeras do delírio. Imagens da minha mulher e dos meus filhos flutuam perante os meus olhos, por entre os cadáveres. Dez Calmotins, onze. Sob os beirais do Portão Negro do Templo Zōjōji. Oh, com tal bravura, rumo à Vitória. O meu filho traz uma pequena bandeira na mão. A minha filha traz também uma pequena bandeira na mão. Quando tivermos feito o juramento e deixado a nossa terra para trás. Os meus pais estão cá. Amigos da escola, colegas da equipa de beisebol do liceu, colegas com quem me formei. Quem pode morrer sem antes ter revelado o seu verdadeiro carácter? Cada um deles segura um estandarte com o meu nome inscrito, cada um deles defronte do Portão Negro. De cada vez que ouço as cornetas do nosso exército, fecho os olhos e vejo onda após onda de bandeiras a desejarem‑nos sorte para o combate. Há autocarros turísticos cheios de raparigas da escola em excursão. A terra e a sua flora ardem em chamas, enquanto nós dividimos as planícies incessantemente. O relógio marca o meio‑dia quando o meu camião se aproxima do Portão Negro. Capacetes com o Sol Nascente gravado. O Nissan pára em frente ao portão e eu salto do camião. E, afagando a crina dos nossos cavalos, quem sabe o que trará o dia de amanhã — vida? Olho para a multidão, para os seus estandartes e bandeiras, e saúdo‑os."
"Tokyo Year Zero" de David Peace
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