sábado, 21 de maio de 2011

Depoimento

Deponho no processo do meu crime
(Sou testemunha
E réu
E vítima
E juiz)
Juro
Que havia um muro,
E na face do muro uma palavra a giz.


Merda! – Lembro-me bem.
– Crianças... – disse alguém
Que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletrar
O vocábulo indecente,
E de repente,
Como quem adivinha,
Numa tristeza já de penitente,
Vi que a letra era minha...


Miguel Torga

domingo, 8 de maio de 2011

Crepúsculo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

David Mourão-Ferreira