sábado, 28 de agosto de 2010

Dorme, meu amor

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão desvia os passos do medo. Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme, meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui, de guarda aos pesadelos — a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

Maria do Rosário Pedreira

E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.



David Mourão-Ferreira

Gérard Dubois

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Quem pode ter?

Que corpo é este, que engana que trai
Que beleza é esta que nunca se retrai
Que mulher vadia, que se julga melhor
E que a cada dia se torna pior
Que a cada dia morre e ressuscita
E sem saber mata e incita
Quem pensa o seu corpo poder comprar
Quem pensa a sua alma poder usar.


Vincent ESTRADA
-Villon's Wife (2009)-
Villon's Wife, Kichitaro Negishi (2009)

Num Japão pós guerra, mais exactamente em Dezembro de 1946 Otami (Tadanobu Asano) rouba 5.000 yen a um casal proprietário de um bar, ao qual este era cliente assíduo. Ao encalço do ladrão o casal descobre a sua casa e acaba por conhecer a boa e generosa esposa Sachi (Takako Matsu), que promete remediar o sucedido devolvendo o dinheiro roubado no dia seguinte. Todavia sem forma de arranjar tal quantia Sachi entrega-se aos proprietários como garantia, começando a trabalhar para estes. 
Baseado no romance em parte autobiográfico do autor Osamu Dazai, Villon's Wife conta-nos a história da relação de um escritor brilhante, apesar de pessimista e altamente auto-destrutivo, com a sua bela e curajosa esposa que não obstante das constantes humilhações continua, a demonstrar ao marido uma lealdade inabalável.
Um dos mais aclamados filmes japoneses do último ano, Villon's Wife conta com a extraordinária interpretação de Takakako Matsu que lhe valeu o prémio de melhor actriz japonesa por este papel. 

O Livro do Alfabeto

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Ódio ?

Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo d’outra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... não vale a pena...

Florbela Espanca

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Por Entre os Sons da Música

Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.

Vergílio Ferreira

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Tu tens um medo

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

um dia canso-me de ouvir os pássaros

um dia canso-me de ouvir os pássaros. de cantar canções no chuveiro. de admirar o tempo e as horas que não voltam. canso-me de me sentir cansado. de ver sempre o mesma expressão inútil em frente ao espelho. canso-me de ir para o trabalho. de comer. de beber. de respirar. canso-me de ouvir sem escutar. de raciocinar sem perceber. canso-me de ingerir drogas e até de foder. mas canso-me sobretudo, de ser homem sem o ser.

Vincent ESTRADA
"Dois amantes felizes não têm fim nem morte, nascem e morrem tanta vez enquanto vivem, são eternos como é a natureza."
Pablo Neruda

Vivemos sobre a terra

Vivemos sobre a terra. Apresento-te
a nossa casa, os nomes que damos ás coisas,
as honras que nos são destinadas,
este corpo de sangue e nervos.
Sobre ele que julgamos vivo
dizes minha razão. A da vida
e a de outras coisas que se percebem.

Os barcos retomam lentos o seu lugar
em volta de um coração marinho.
Como se morre aqui?

João Miguel Fernandes Jorge

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

-Memories of Murder-
Memories of Murder, Bong Jun-ho (2003)
Durante o anos de 1986 e 1991, várias mulheres foram violadas e seguidamente assassinadas na província de Gyeonggi (Coreia do Sul). O filme introduz-nos inicialmente o inspector responsável pela investigação dos crimes, Park (Kim Sang-kyeong), que apesar de empenhado no seu trabalho não consegue obter quaisquer pistas significativas, devido, talvez, aos métodos pouco ortodoxos usados na época pelos inspectores de policia em interrogatórios, que ignoram os direitos e a estabilidade física e emocional dos suspeitos. Mas a chegada de Seo (Kim Sang-kyeong), o novo inspector vindo de Seoul, parece trazer novas ideias e mais optimismo em relação ao desenvolvimento do caso.
Realizado por um dos melhores realizadores Sul Coreanos, Bong Jun-ho (The Host (2006) e Mother (2009). Memories of Murder é baseado na historia real do caso que impressionou a coreia e, cujo culpado nunca foi descoberto. 

A caminho da cama

Hoje que se deitou cedo se chovia
que maravilha estamos afinados.
Que se dormiu pouco que tanto fazia
vem por aí gente que se conhece e
juro que alguma palavra me aborrece
assim deitada junto das outras e
perguntam se estão bem se é aqui e
se não tem no texto mais ninguém
que não querem no texto mais ninguém
e o que na boca acontece
a minha e a tua bem de ver
que parece que andamos à turra
mas estamos apenas a caminho da cama
gostamos do engano desta trama minha
e dessa trauma tua se não me engana
agora que se se deitou cedo e chovia
e combinamos jantar mais logo
telefonas tu e telefono eu.

Hugo Milhanas Machado

Um dia li num livro: "Viajar cura a melancolia."

Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes - e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar.
Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vaga noite...


Al Berto, "O anjo mudo"
"Amor. Amor. Amor, gostava de dizer esta palavra até gastá-la ainda mais. Amor, gostava de dizer esta palavra até perder ainda mais o seu sentido. Amor. Amor. Amor, até ser uma palavra que não significa nem sequer uma ilusão, uma mentira. Amor, amor, amor, nem sequer uma mentira, nem sequer um sentimento vago e incompreensível. Amor amor amor, até ser nem sequer uma palavra banal, nem sequer a palavra mais vulgar, nem sequer uma palavra. Amoramoramor, até ao momento em que alguém diz amor e ninguém vira a cabeça para ouvir, alguém diz amor e ninguém ouve, alguém diz amor e não disse nada. Sozinho, diante da campa. O amor é a solidão."

José Luís Peixoito, "Uma casa na escuridão"

Continua...

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me,
sensação amada continua a voltar e a tomar-me —
quando acorda a memória do corpo,
e desejo antigo volta a passar no sangue;
quando os lábios e a pele se lembram,
e sentem as mãos como se tocassem de novo.

Continua a voltar frequentemente e a tomar-me à noite,
quando os lábios e a pele se lembram…
Konstandinos Kavafis

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Poster Art - Olly Moss

Aqueles que me têm muito amor

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Florbela Espanca 
Amei o coração de uma mulher... amei um par de olhos verdes adormecidos entre os meus braços
Amei a exactidão de um gesto, do silencio de um beijo roubado
Amei o amargo dia em que a noite nos separou para sempre, numa melancolia estranha
em que já mais nada advirá do adeus

Vincent ESTRADA

-When you're strange, Tom DiCillo (2009)-

People are strange when you're a stranger
Faces look ugly when you're alone
People seem wicked when you're unwanted

Streets are uneven when you're down
When you're strange- faces come out of the rain
When you're strange- no one remembers your name
When you're strange when you're strange when you're str-ange

Documentário acerca dos The Doors, realizado por Tom DiCillo, com material inédito de arquivo do mítico vocalista Jim Morrison. Algumas das imagens apresentadas são quase surreais; como por exemplo, gravações de Morrison a guiar no deserto sozinho ouvindo pela rádio as noticias da sua morte, ou mais ainda, excertos do filme experimental realizado pelo próprio em 1969, quando este estudava cinema na Universidade da Califórnia.
When you're strange não deixa de lado os demais elementos da banda: Manzarek Ray, Robby Krieger e John Densmore, sendo este, segundo os próprios, uma narração fidedigna dos 54 frenéticos meses que coincidiram com a criação dos The Doors, quando Morrison conhece Manzarek, até ha misteriosa morte do primeiro em 1971.
Manzarek referiu-se a este filme como: "Esta será a verdadeira história dos The Doors" e será "anti-Oliver Stone." A verdade é que muitos dos fãs da banda, assim como os próprios elementos do grupo, consideraram o filme de Oliver Stone, The Doors (1991), como um retrato irrealista de Jim Morrison e dos acontecimentos em redor da sua vida e da sua carreira. 
Dick Wolf produtor e fã incondicional da banda disse: "Lembro-me de ter comprado o primeiro álbum dos Doors no dia em que ele saiu e de o ter ouvido umas dez ou 12 vezes de seguida: ambos os lados, cada uma das canções." When You''re Strange, diz Wolf, "é a história dos Doors, mas é também um mergulho numa época que jamais se repetirá".

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

-Tóquio Ano Zero-
"Deixo‑me ficar deitado entre os cadáveres. Um Calmotin, dois. Centenas deles, milhares deles. Folhas mortas a flutuar na brisa de Outono. Tento erguer a cabeça, mas não consigo. Uma nuvem de moscas e mosquitos sobrevoa o meu corpo. Quero enxotá‑los, mas não consigo. Nuvens baixas e escuras atravessam o céu. É tempo de revelar a verdadeira essência da nação. Ontem à noite, algures entre a meia‑noite e o amanhecer, entre a retirada e a derrota, a chuva banhou este lugar e, apesar de a tempestade ter passado, ainda caem torrentes frescas de chuva sobre os cadáveres e sobre a minha cara. Sinto a cabeça dormente, os meus pensamentos são as sombras efémeras do delírio. Imagens da minha mulher e dos meus filhos flutuam perante os meus olhos, por entre os cadáveres. Dez Calmotins, onze. Sob os beirais do Portão Negro do Templo Zōjōji. Oh, com tal bravura, rumo à Vitória. O meu filho traz uma pequena bandeira na mão. A minha filha traz também uma pequena bandeira na mão. Quando tivermos feito o juramento e deixado a nossa terra para trás. Os meus pais estão cá. Amigos da escola, colegas da equipa de beisebol do liceu, colegas com quem me formei. Quem pode morrer sem antes ter revelado o seu verdadeiro carácter? Cada um deles segura um estandarte com o meu nome inscrito, cada um deles defronte do Portão Negro. De cada vez que ouço as cornetas do nosso exército, fecho os olhos e vejo onda após onda de bandeiras a desejarem‑nos sorte para o combate. Há autocarros turísticos cheios de raparigas da escola em excursão. A terra e a sua flora ardem em chamas, enquanto nós dividimos as planícies incessantemente. O relógio marca o meio‑dia quando o meu camião se aproxima do Portão Negro. Capacetes com o Sol Nascente gravado. O Nissan pára em frente ao portão e eu salto do camião. E, afagando a crina dos nossos cavalos, quem sabe o que trará o dia de amanhã — vida? Olho para a multidão, para os seus estandartes e bandeiras, e saúdo‑os."

"Tokyo Year Zero" de David Peace

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

"O género de liberdade mais importante, é seres verdadeiro. Trocas a tua realidade por um personagem. Trocas os teus sentidos por uma actuação. Desistes da capacidade de sentir, e em troca pões uma máscara. Não pode haver uma revolução em grande-escala, se antes não houver a revolução individual da pessoa. Primeiro tem que acontecer cá dentro."

Jim Morrison

terça-feira, 3 de agosto de 2010

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Olhos nos olhos

Casablanca, Michael Curtiz (1942)

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem por que
E tantas águas rolaram
Tantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você

Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz

Maria Bethânia & Chico Buarque
-Accidents Happen-
Accidents Happen, Andrew Lancaster (2009)

O meu fascínio pelo cinema, em muito se deve ao impacto visual e Accidents Happen é prova mais que provada disso. O genérico inicial é digno de se lhe tirar o chapéu, os actores apesar da sua grande maioria serem jovens, demonstram uma grande vivacidade e à-vontade. Quanto à fotografia e ao texto, são praticamente indiscutíveis... o resultado é de facto muito bom, num retrato cómico/dramático de uma família da classe média americana durante a década de 80.