sábado, 31 de julho de 2010

Quando eu nasci

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

José Régio

terça-feira, 27 de julho de 2010

No dia em que os dias se tornaram mais longos, as horas mais quentes, as noites mais solitárias, eu perdi-me de ti. Trazia em mim um cansaço infinito de quem não dorme. Talvez de ansiedade. Escrevia imenso, mas as palavras nunca conseguiam apaziguar a minha falta e a minha dúvida. Penso que te escrevi inúmeras cartas, nessa época, mas nunca te as cheguei a enviar, pois as caixas de correio não existiam nos meus sonhos.


Vincent ESTRADA

Beijo

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

Jorge de Sena

segunda-feira, 26 de julho de 2010

"onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a vida, sem mais nada - estará aqui ?
fora das muralhas da cidade ?
no interior do meu corpo ?
ou muito longe de mim - onde não possuo outra razão...
e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente."

Al Berto

sábado, 24 de julho de 2010

Cega-me os olhos, e ver-te-ei
Tapa-me os ouvidos, e ouvir-te-ei
Sem pés, irei ainda ao teu encontro
Sem boca, esconjurar-te-ei mais uma vez.
Parte-me os braços, e envolver-te-ei
Com o meu coração como se fora uma mão
Arranca-me o coração e o meu cérebro palpitará
E se ateares fogo mesmo ao meu cérebro
Transportar-te-ei no meu sangue.

Rainer Maria Rilke
Gustave Courbet - L'origine du monde

Renascer

"Conheço agora alguma da minha capacidade… Sei o que quero fazer com a minha vida, tudo isto sendo tão simples, mas tão difícil para mim sabê-lo no passado. Quero dormir com muitas pessoas – quero viver e odeio morrer – não vou ensinar, nem tirar um mestrado depois de fazer a licenciatura…
Não tenciono deixar que o meu intelecto tome conta de mim, e a última coisa que quero fazer é admirar o conhecimento ou pessoas que detêm o conhecimento! Não quero saber da agregação de factos de ninguém, excepto quando for um reflexo [da] sensibilidade básica que necessito… Tenciono fazer tudo…"


Susan Sontag, “Renascer”

O Que é Escrever?

"Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de indignação social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque a poética precisão de dum acto humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida."



Agustina Bessa-Luís, "Contemplação Carinhosa da Angústia"

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Shooting Strangers in orchard road


-Portraits of Strangers by Danny Santos-
Official Website: http://www.dannyst.com/

Planos que mudaram a minha vida

-The Hunger (1983)-

Luke Chueh

Official Websitehttp://www.lukechueh.com/

Blindness

Depois de vários anos a recusar-se vender os direitos do livro "Ensaio Sobre a Cegueira" - José Saramago rende-se finalmente aos encantos do aclamado realizador brasileiro - Fernando Meireles (" Cidade de Deus", "Fiel e Jardineiro").
Desde logo, tornou-se evidente que adaptar o prémio Nobel português da literatura, ao cinema, não iria ser tarefa fácil - tanto pela complexidade das suas personagens como também pela sua relação com o espaço, enquanto invisuais. Para isso destaca-se a fotografia de César Charlone que cumpre convenientemente a sua missão, exprimindo um grande cuidado em invocar a cegueira a partir da luz e dos planos, onde prevalecem as imagens queimadas, esbatidas e até desfocadas, as cores frias e muitas vezes uma abstracção dos elementos. Numa ou noutra cena as personagens parecem flutuar num "mar de leite" tal e qual como é descrito no livro.
O melhor: a interpretação de Julianne Moore e a fotografia de César Charlone (" Cidade de Deus" e "Fiel e Jardineiro").

O primeiro ser humano é atingido por uma misteriosa cegueira branca - vírus que rapidamente se propaga atingido muitos outros habitantes da cidade. Para lhe fazer frente, e visto o total desconhecimento, o Governo coloca os infectados de quarentena num velho hospital psiquiátrico. E o tempo passa... a chegada de cada vez mais doentes e a falta de alimento faz com que alguns dos demais infectados comecem a tirar o seu próprio partido. Largados ao abandono os sobreviventes terão de lutar.
Blindness retrata personagens sem nome, num lugar desconhecido, num tempo indefinido. Retrata aqueles que perderam subitamente a visão, e uma mulher (Julianne Moore) que carrega consigo o fardo de ser a única que permanece ilesa à cegueira. Não se pode dizer que Moore seja a protagonista, porém à que admitir que nela recai toda a fonte de riqueza dramática da trama - além de ser nitidamente a personalidade mais explorada. Pena é, que outros não tenham tido o mesmo grau de atenção, como no caso de Danny Glover que se assume a certa altura como narrador, mas que pouco nos diz como personagem interveniente na história. Além disso Blindness peca também pela banda sonora que nada acrescenta as imagens - que transmite muito pouca emoção.
Globalmente as mulheres destaca-se, arrebatando-nos com momentos de plena beleza e serenidade, incorporando a força e a coragem num cenário atroz. Elas têm o dom de conseguir mudar o rumo da história.
A Cegueira é a metáfora utilizada para caracterizar o mundo onde vivemos, concretizando o fenómeno do homem de se encontrar permanentemente cego. Posso concluir que Blindness não consegue ser tão bom como "Cidade de Deus" ou "Fiel e Jardineiro", mas sem dúvida que este não lhe ficará indiferente.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Quero voar

Quero voar
-mas saem da lama
garras de chão
que me prendem os tornozelos.

Quero morrer
-mas descem das nuvens
braços de angústia
que me seguram pelos cabelos.

E assim suspenso
no clamor da tempestade
como um saco de problemas
-tapo os olhos com as lágrimas
para não ver as algemas...

Mas qualquer balouçar ao vento me parece Liberdade.

José Gomes Ferreira

terça-feira, 20 de julho de 2010

enquanto pensar: Até amanhã, talvez...
pensarei sempre que ainda te amo.

Vincent ESTRADA

Devias estar aqui rente aos meus lábios

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum

Eugénio de Andrade

Por um olhar, um mundo

Por um olhar, um mundo;
por um sorriso, um céu;
por um beijo...não sei
que te daria eu.

Gustavo Adolfo Bécquer

Fim

Sei que és o fim de muitas palavras. Demasiadas!
Desta melancolia, desta cama estreita onde respiro sozinho.
Tenho medo dos dias que se acumulam e que daqui não saio.

Perguntam-me: "estás doente?" talvez, mentalmente!
Não sei. O que fazer com as palavras, estas palavras que não digo.
Mas que penso...

Amo-te, com tantas forças quantas tenho,
que são poucas, nestes tempos em que não estou inteiro,
onde busco consolo na cama estreita,
onde vivo há mais de 20 anos.
Morrerei aqui, deixarei esta vida a meio?
Fecharei a boca e deixarei de ser grosseiro
consolidarei os dias e as noites insatisfeito
por ter ficado tanto tempo fechado
na angustia de não sair deste quarto
onde vivo há mais de 20 anos.

E sei, que me acharás um idiota, mas não me responsabilizo
sou fraco, e sou fuleiro, sou um homem degenerado e apaixonado
sou feito, por defeito, de palavras quantas tenha mentalmente imaginado
Te dedicar.

Vincent ESTRADA

Ausência

Eu deixarei que morra
em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes

António Pinho Vargas



-Memórias de um homem singular-

sexta-feira, 16 de julho de 2010

The Social Network

"Não chegas aos 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos"

O trailer do mais recente filme de David Fincher, "The Social Network", sobre o criador do Facebook, Mark Zuckerberg. Baseado no livro de Ben Mezrich, "Bilionários Acidentais", "The Social Network" conta a história da criação do Facebook num dormitório em Harvard.
Esta é a luta de um jovem que ambicionou ligar 500 milhões de pessoas numa única rede social.

O Conde Drácula

Drácula (1931), de Tod Browning

Algures na Transilvânia, Drácula, o monstro, jaz adormecido no caixão à espera que a noite caia. Como a exposição aos raios solares lhe causariam, por certo, a morte, ele protege-se na câmara orlada a cetim, com o nome da família gravado a prata. Quando o momento da escuridão chega, através de algum instinto miraculoso, o Demónio emerge da segurança do seu esconderijo e, assumindo as abomináveis formas do morcego ou do lobo, vagueia pelos campos, bebendo o sangue das vítimas. Por fim, antes que os primeiros raios do seu arqui-inimigo, o Sol, anunciem um novo dia, regressa sem demoras à segurança do caixão escondido e dorme. O ciclo recomeça.
Ei-lo que começa a mover-se. O estremecimento das pálpebras é uma resposta a um qualquer instinto remoto e inexplicável que lhe diz que o Sol está prestes a ocultar-se e que é chegada a sua hora. Esta noite, sente-se particularmente esfomeado e enquanto permanece deitado, agora completamente desperto, com a capa e o casaco de Inverno debruados a vermelho, à espera de sentir, com misteriosa percepção, o preciso momento da escuridão antes de abrir a tampa e sair, decide quais vão ser as vítimas da noite. O padeiro e a mulher, pensa de si para si. Suculentos, disponíveis e insuspeitos. Pensar no incauto casal, cuja confiança tinha cuidadosamente cultivado, excita febrilmente o seu desejo de sangue e quase não consegue aguentar os últimos segundos antes de trepar para fora do caixão em busca da presa.
Subitamente apercebe-se de que o Sol se pôs. Como um anjo do Inferno, ergue-se com rapidez e, transformado num morcego, voa atabalhoadamente em direcção à casa das vítimas que longamente esperara.
- Conde Drácula, que bela surpresa – diz a mulher do padeiro, abrindo a porta para o deixar entrar.
(Tinha de novo assumido a forma humana, quando entrou na casa, dissimulando com charme os seus objectivos rapaces.)
- O que é que o traz cá tão cedo? – pergunta o padeiro. 
- A nossa combinação para jantar – responde o conde. – Espero não me ter enganado. Convidaram-me para jantar esta noite, não foi?
- Sim, esta noite, mas não dá para sete horas.
- Desculpe? – inquire Drácula, olhando em torno, embaraçado.
- Ou veio para ver o eclipse connosco?
- Eclipse?
- Sim, o eclipse total de hoje.
- O quê?
- Alguns momentos de escuridão desde o meio-dia até dois minutos depois. Olhe pela janela.
- Oh! Oh! Estou metido em trabalhos.
- Hem?
- E agora, se me dão licença…
- O quê, conde Drácula?
- Tenho de ir andando…mm… Oh, meu Deus… – Freneticamente, apalpa o puxador da porta.
- Já vai? Acabou de chegar.
- Sim, mas… penso que fiz mal…
- Conde Drácula, está pálido.
- Estou? Preciso de um pouco de ar fresco. Prazer em vê-los…
- Venha. Sente-se. Vamos beber um copo.
- Beber? Não, tenho de me apressar. Eh, está-me a pisar a capa.
- Claro. Acalme-se. Um pouco de vinho.
- Vinho? Oh!, não, deixei de beber; o fígado e todas essas coisas, sabe. Tenho mesmo de me despachar. Lembrei-me que deixei as luzes do castelo acesas; a conta vai ser enorme…
- Por favor – diz o padeiro abraçando o conde com firme amizade. – Você não está a incomodar. Não faça cerimónia. Portanto veio mais cedo.
- Na realidade gostava de ficar, mas há um encontro de velhos condes romenos na cidade e eu sou o responsável pelas carnes frias.
- Sempre com pressa. É um mistério como não arranja um ataque de coração.
- Sim, tem razão. E agora…
- Estou a fazer pilaf de galinha para esta noite – badala a mulher do padeiro. – Espero que goste.
- Esplêndido, esplêndido – diz o conde, sorrindo enquanto a empurra para cima da roupa suja. Então, abrindo por engano a porta do armário, entra. – Jesus, onde é que está o diabo da porta da rua?
- Ah! Ah! – ri a mulher do padeiro. – Que homem divertido que é o conde.
- Estava à espera que gostasse – diz Drácula, forçando um sorriso amarelo. – Agora deixem-me passar. – Enfim abre a porta da rua, mas o tempo tinha-o ultrapassado.
- Oh! Olha, mamã – diz o padeiro -, o eclipse deve ter acabado. O Sol está a aparecer outra vez.
- Exacto – diz Drácula, batendo com a porta da rua. – Decidi ficar. Baixem as persianas depressa, depressa! Mexam-se!
- Quais persianas? – pergunta o padeiro.
- Não há nenhumas, certo? Imaginem. Têm uma cave?
- Não – diz a mulher afavelmente. – Estou sempre a dizer ao Jarslov para fazer uma, mas ele nunca me dá ouvidos. Sabe lá como é o Jarslov, o meu marido.
- Estou a sentir-me mal. Onde é o armário?
- Já fez essa, conde Drácula. E a mamã e eu achámos muita graça.
- Ah, que homem divertido que é o conde.
- Olhem, vou para o armário. Batam às sete e meia.
- E com estas palavras o conde entra para o armário e bate com a porta.
- Eh! Eh! Ele é tão engraçado, Jarslov.
- Oh, conde. Saia do armário. Deixe-se de disparates. – Do interior do armário chega a voz abafada do Drácula.
- Por favor, palavra de honra. Deixem-me ficar aqui. Sinto-me bem. A sério.
- Conde Drácula, deixe-se de maluqueiras. Já estamos fartos de rir.
- Posso garantir-lhes, adoro este armário.
- Sim, mas…
- Eu sei, eu sei… parece estranho, e no entanto aqui estou eu em grande. Dizia justamente, um dia destes à senhora Hess: «Dêem-me um bom armário e eu sou capaz de ficar lá dentro durante hora.» Deliciosa mulher, a senhora Hess. Gorda mas deliciosa… E agora porque é não se vão embora e discutimos isso ao pôr do Sol? Oh, Ramona la da da di da da di, Ramona…
- Eis que chegam o presidente da Câmara e a mulher, Katia. Estão de passagem e decidem retribuir uma visita aos bons amigos, o padeiro e a mulher.
- Olá, Jarslov. Espero que eu a Katia não incomodemos.
- Claro que não, senhor presidente. Venha, conde Drácula! Temos visitas!
- O conde está cá? – pergunta o presidente surpreendido.
- Está e adivinhe onde – diz a mulher do padeiro.
- É raro vê-lo por aí tão cedo. De facto, nem me consigo lembrar de o ter visto de dia.
- Pois bem, está cá. Saia, conde Drácula!
- Onde é que está? – pergunta Katia, sem saber se havia de rir ou não.
- Saia agora!, vamos lá! – A mulher do padeiro começa a ficar impaciente.
- Está no armário – diz o padeiro apologeticamente,
- A sério? – pergunta o presidente da Câmara.
- Vamos lá – diz o padeiro, trocista e bem humorado, enquanto bate na porta do armário. – Já chega. O presidente da Câmara está aqui.
- Saia lá, Drácula – grita Sua Excelência -, vamos beber um copo.
- Não, vão-se embora. Tenho aqui que fazer.
- No armário?
- Sim, não estraguem o dia por minha causa. Eu consigo ouvir o que dizem. Vou ter com vocês se tiver algo a acrescentar.
Entreolharam-se e encolheram os ombros. O vinho soltou-se e todos beberam.
- Um pouco de eclipse hoje – diz o presidente da Câmara, beberricando no copo.
- Sim – concorda o padeiro. – Incrível.
- Sim. De meter medo – diz uma voz de dentro do armário.
- O quê, Drácula?
- Nada, nada. Deixe.
E assim o tempo passa, até que o presidente da Câmara já não suporta mais e, forçando a porta do armário, grita:
- Saia lá, Drácula. Sempre pensei que você era um homem com maturidade. Pare com este disparate.
A luz do dia entra, fazendo guinchar o monstro demoníaco, que lentamente se dissolve num esqueleto e depoi
s em pó diante dos olhos das quatro pessoas presentes. Inclinando-se para o monte de cinzas brancas no chão do armário, a mulher do padeiro grita:
- Isto quer dizer que cancelamos o jantar desta noite?

Woody Allen

Enquanto...

Enquanto houver uns olhos que reflectem
outros olhos que os fitam,
enquanto a boca responda a suspirar
aos lábios que suspiram,
enquanto sentir-se possam ao beijar-se
duas almas confundidas,
enquanto exista uma mulher formosa,
haverá poesia!



Gustavo Adolfo Bécquer

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Foi um momento

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve!...

Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há uma coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?

Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

Fernando Pessoa

Naquela manhã

Naquela manhã o sol entrou rasteirinho pela janela e desesperadamente pousou-te na pele. Eu vi a luz, a dar-te vida, na lentidão dos movimentos de quem desperta. Nos teus olhos eu vi espelhos rendidos aos teus encantos. No teu rosto, eu vi uma beleza cega. No teu peito vi ameixas doces. Na tua boca vi o paraíso de todas as bocas, que eu já toquei. Tudo quanto és eu escuto, eu observo, eu sinto, tudo quanto te invoca eu rejeito e sofro. Dizem que não és boa para mim, que não és o que pareces ser, mas eu rejeito tudo o que dizem sobre ti e sinto o que sinto sem pensar. Pois tudo o que possa pensar, tu és ao acordar. Olho-te sozinha a vestires-te e depois a ires-te embora sem me dizeres sequer: até amanhã. Vejo-te ir... e, quando sais eu choro por dentro, com medo de morrer naquele momento, triste e sozinho.

Vincent ESTRADA
"Sabias tu, sabia ela
que o amor é fodido
e que a vida não é bela"

Vincent ESTRADA